Thursday, May 31, 2007

A comilança





















(...)Estava difícil falar com Das Dores. Com sua pouca altura, já pesava mais de 150 quilos, adquiridos ao longo dos últimos anos.


Estava cada vez mais irascível. A comida farta não atenuava seu mau humor, nem suavizava a sua visão pessimista e egocêntrica.

(...) Havia clínicas especializadas no assunto. A gordura em excesso era o mal dos paises industrializados e a obesidade mórbida crescia na mesma medida em que o mundo parecia entrar em um processo de histeria em massa e os países pobres, castigados pelo calor, pelas epidemias e pelos desastres da natureza, exibiam seres esqueléticos esperando a morte.
Das Dores não se comovia com os extremos das desgraças.
- Passei minha vida dentro de uma delegacia, vendo horrores e tentando salvar quem fosse possível! E para que? Não há como vencer o mal! – afirmava, com voz alterada.
O ar de equilíbrio na casa do neto a irritava. Mas a idéia de uma internação, ainda que fosse em um spa repleto de conforto, a enojava.
- Sinto-me bem, não é o que importa? Depois, não estou assim tão gorda...
Silvester sentia vontade chorar. Mas de nada adiantavam as suas súplicas. Das Dores, depois de cada discussão, comia ainda mais.

Quando ela não mais saiu de casa, Júlio e Silvester perderam de vez a esperança de recuperá-la.
- Sua avó está se matando aos poucos. Devemos interná-la à força! – disse Júlio. Aquela altura a mulhr não conseguia mais caminhar na rua, nem entrar em um carro.
Aliás, Das Dores não cabia em nenhum lugar. Até as portas pareciam encolher e prender os seus quadris nas esquadrias. Mandara reforçar a cama, que mais parecia um bloco maciço, mas o problema era o colchão: nenhum material suportava muito tempo seu peso e em geral seu corpo afundava o material, fosse da mais alta densidade, fosse de mola, fosse a espuma composta de nanotubos de carbono ou o que quer que existisse!
Um mecanismo complexo de trilhos em aço, comandados por sistema computadorizado, era imprescindível para ajudá-la a levantar-se.(...) O vaso sanitário era uma obra-prima da engenharia, com a circunferência de uma banheira pequena e com todo o equipamento necessário para que Das Dores apenas se preocupasse em sentar-se. (...)

- Ela se empanturra para depois soterrar o sistema de esgoto! – resmungava Júlio.
Mas na verdade ele estava apavorado, sentindo-se impotente com a situação de Das Dores.
- Sua avó vai explodir, não tenha dúvida! A pele está esticada demais!
Certo dia, ao verificar que o sistema computadorizado da cama registrava 230 quilos de peso, Silvester deu o ultimato à Das Dores. Ela seria internada em uma clínica.
- Que raio de neto é você? Está invadindo a minha privacidade!
Ele ficou desconcertado. Pedia desculpas, mas não tinha como evitar tal intromissão.

- Desculpe nada! Você herdou o desvario de sua mãe, a loucura de Anna e a bunda mole de Júlio!
Eu quero comer! Eu gosto! Comer! Comer o quanto puder, entendeu? É minha vida, meu estômago, meus humores, porra! – berrava, enchendo a boca de uva-passa coberta de chocolate e cuspindo para todo lado.
- Não pode ser assim, vó! Já imaginou quantas pessoas poderiam ser alimentadas com toda comida que sua gula consome? Você está comendo por vinte!
O rosto rechonchudo de Das Dores petrificou-se. (...)



Trecho de "O Círculo" -MM