Wednesday, July 05, 2006

O horror da guerra


(...)Uma noite, algo ocorreu. Alan acordou com a voz de Emma entoando um canto desconhecido. Ela estava sentada, com as mãos levantadas, os olhos abertos e fixos em algum ponto.

- O que aconteceu, querida? – perguntou preocupado.

Passou a mãos em sua face e percebeu que ela não estava acordada. Um ataque de sonambulismo ou uma espécie de transe, pensou ele, não conseguindo deixar de sentir gelar o corpo quando, em tom grave e ritmado, ela começou a falar.

- Muitos estão morrendo e há tanta dor, que os que amam aos que se vão não tem mais lágrimas para derramar. Estão secos como o tronco arrancado de sua raiz. Há dor, muita dor!... – As lágrimas começaram a escorrer pela face de Emma, tantas que ensopavam a camisola que vestia.

Mas ela não se mexia.

- Quem está sofrendo? – perguntou Alan, que a esta altura, sentia crescer uma sensação de medo dentro dele, embora não soubesse exatamente porquê.

- Muitos...homens, mulheres, velhos, crianças...oh, meu Deus, as crianças! Morrem como formigas sob as botas deles...- ela parou e recostou-se, caindo sobre o travesseiro. Alan achou que ia adormecer novamente, mas Emma continuava com os olhos abertos e uma expressão de terror no rosto.

- As botas pesadas de sangue estão chegando... vão invadir a Polônia e marchar sobre a Dinamarca...outros lugares mais...sobre Paris.... Muitos vão se render à essa marcha de sangue!

-Mas quem vai causar tudo isso?- perguntou Alan, atônito com a firmeza de seu relato. Ela parecia descrever cenas que assistia.

- Há culpados e inocentes, de ambos os lados....de todos os lados....Não há heróis nessa matança... – as lágrimas continuavam a escorrer, fartas – Oh, meu Deus! Há vilões que se fazem de heróis, todos somos enganados....os inocentes são trucidados.....

Dito isso, fechou os olhos!

Alan esperou, mas Emma parecia ter adormecido.

Ficou velando por ela, até amanhecer. Enquanto observava o seu sono, tentava entender as
palavras que ouvira.

A Europa vivia uma crise, raciocinava, que começara muitos anos antes, quando o recém-nomeado chanceler na Alemanha, um homem chamado Hitler, havia iniciado perseguições aos comunistas, social-democratas e judeus. Diziam que em poucos anos os judeus haviam perdido a cidadania alemã, sob alegação de que eram inimigos do Estado e eram deportados.

Nas discussões que mantinha com os amigos, Alan defendia o direito de cada país reorganizar sua economia e sua sociedade e a deportação dos judeus não soava tão cruel. Mesmo quando um desconhecido lhe contou a respeito de uma noite em que ruas inteiras, em todo país, pareciam cobertas de cristais, tamanha a quantidade do quebra-quebra encetado contra os judeus, ocorrida no final de 1938, não havia se impressionado, embora criticasse a dureza com que os nazistas alemães haviam tratado redutos de judeus, queimando sinagogas e quebrando os vidros das vitrines das lojas e das casas da Alemanha e da Áustria.

- Você testemunhou assassinatos? – perguntava, incrédulo.

O homem, um polonês que havia vivido uma complicada história de amor com uma alemã judia, respondia que era óbvio.

- Não vi os campos malditos de que falam, mas assisti a violência e assassinatos nessa noite. Dizem que milhares foram torturados, mortos e deportados.

- Por causa do assassinato do diplomata Ernst von Rath em Paris por aquele jovem judeu?

- É o que dizem. Conversa! Há muitos anos os judeus são o alvo. Seus bens são confiscados! Além disso, algo soa mal...dizem que o risco é grande, que não seria apenas uma questão de retomada do poder econômico pelos arianos dentro da Alemanha. Soube de Guernica?

- Que Guernica? Não sei nada a respeito!

- É uma cidadezinha basca, eu creio. Dizem que foi bombardeada e dizimada por causa de um carvalho, símbolo da força espanhola!

-Ah, fantasias!

- Por que bombardear camponeses indefesos? Aí tem coisa! Não ouviu nada sobre Franco e a guerra civil na Espanha?

- Mas que bobagem! Se assim fosse, os grandes países não manteriam negócios com a Alemanha!

- Bom, nada sei quanto à esse lugarejo, mas acredito que a caça aos judeus não é o fim, mas o começo de algo sinistro!

Alan passava o tempo todo pensando sobre os riscos. Enquanto a violência não o ameaçava, ela não passava de ficção. Mas agora parecia cada vez mais próxima e real!

Ninguém acreditava nos boatos de que judeus eram assassinados em tamanha quantidade, que as suas covas tinham o diâmetro de crateras, onde os corpos eram jogados. Seria absurdo demais! Da mesma forma que era impossível acreditar que essa organização interna levasse realmente à invasão de países fortes como a própria França ou que Hitler, agora chefe do Exército e das Forças Armadas alemãs, se atrevesse a um ato desses.

A França esquivava-se da guerra e apenas ocasionalmente sondava o território alemão em seus aviões.

No entanto... – Alan tentava entender, enquanto observava Emma –... no entanto a maneira como ela havia falado em seu sono, parecia uma premonição.

Emma agiu normalmente quando acordou e durante todo o dia, como se nada houvesse ocorrido.
Em dúvida, Alan achou melhor não tocar no assunto.

Mas quando, duas noites depois, sentiu o corpo de Emma enrijecer durante o sono, não teve mais dúvidas de que ela se referia mesmo a um risco imediato.

Nessa noite, da mesma forma que a anterior, como se relatasse cenas que aconteciam em sua mente, Emma falou sobre o poder do ódio e a manipulação das massas. Falou da mentira que se escondia e que o pecado da tirania e do despotismo sádico era apenas o começo da sede do poder absoluto sobre a terra, que parecia começar ali na Europa, mas que no futuro espalhar-se-ia como bolor sobre outros continentes.

- Há inocentes e culpados de todos os lados, não há heróis...A guerra que se inicia vai perdurar por alguns anos e todos tremeremos. Ao final dela restará o que temos na Europa e outros dois vão imperar no poder mundial...E a mentira não será extirpada, mas recairá sobre a terra e esconderá um novo período de dor sob o futuro...

Disse isso em alto e bom tom e imediatamente dormiu. ( "O Círculo", de Mirna Christhensen-MM, capítulo XII, livro I)

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